segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Racismo religioso

Cresci na periferia, e o que mais tinha na área, na minha época, eram arruamentos irregulares, terrenos vazios e muitas encruzilhadas, de vários tipos. Não sei hoje, mas, naquele tempo, as encruzilhadas eram um convite aos – que me perdoem o termo preconceituoso, mas era como falávamos então – macumbeiros.

 

Cumbucas com farofa, charutos, velas pretas e vermelhas, algumas com galinhas mortas, outras com garrafas de cachaça ou cidra vagabunda, outras ainda com tigelas de pipoca. Umas mais ricas, outras mais modestas... Acho que já existia na minha infância uma espécie de estratificação social entre os seguidores da religião.

 

A nós, crianças, aquilo assustava. Tinha a ver com as Trevas, e as Trevas tinham a ver com o Mal. Os mortos obscuros que frequentavam as encruzilhadas não podiam trazer o Bem, já que exigiam sacrifícios, só apareciam à meia-noite e certamente quem os invocava não estava pensando em oferecer felicidade aos vizinhos, aos maridos traidores ou aos colegas invejosos.

 

É claro que os trabalhos tinham destinos específicos, mas para nós eles reuniam coisa ruim o suficiente para sobrar para todo mundo. Por isso, havia uma regra básica: se pisar ou chutar a macumba, tinha de ser com o pé esquerdo; se fosse pegar alguma coisa do conjunto, tinha de ser com a mão esquerda. Tinha um tio que se gabava de beber toda a cachaça que achava nas encruzilhadas, mas tomando o cuidado de usar o lado esquerdo da boca.

 

Não sei por que essa associação da esquerda com a proteção em relação à macumba – ou, talvez, por extensão, da ligação da esquerda com o Mal, e, por isso, sua capacidade de funcionar como salvo-conduto para nos envolvermos com aquilo. Quem sabe venha daí a demonização da esquerda entre os radicais (ou os ignorantes) de extrema direita que cada vez mais abundam neste país tropical.

 

No fundo, a gente não queria mesmo era se envolver com o que havia nas encruzilhadas, mesmo com mãos ou pés esquerdos. A solução era deixar quieto porque, mais dia, menos dia, a chuva ou alguém mais corajoso – ou poderoso – levava a oferenda e devolvia o espaço a novos trabalhos.

 

Claro que havia os mais corajosos, que chutavam as macumbas – com o pé esquerdo, claro – e restava para a gente, mais do que admiração pela coragem alheia, a expectativa de que algo de ruim pudesse acontecer a eles. Mas, vejam só, chutar oferendas nas encruzilhadas era o máximo de demonstração de intolerância religiosa que podia acontecer na aurora da minha vida.

 

No ano passado, em contrapartida, mais de mil denúncias de agressões foram registradas por motivos religiosos no país. No primeiro semestre, só em São Paulo, as religiões de matriz africana foram atacadas 57 vezes, contra seis envolvendo evangélicos e seis com católicos como vítimas. Ou seja, praticantes de umbanda e candomblé foram quase dez vezes mais vítimas de ódio do que evangélicos e católicos.

 

Em 2022, essa diferença caiu, mas se manteve na faixa do quádruplo de casos. E aí é que ouso levantar a questão: a intolerância é apenas religiosa, ou tem a ver com a origem negra dessas matrizes? Não seria o caso de afirmar que o que acontece, explicitamente, é racismo religioso?

 

Boa pergunta para um 2023 que, esperamos, comece com uma luz no fim do túnel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bichinho de pelúcia

Tem um vídeo no Instagram que mostra um pequeno cão carregando na boca um bicho de pelúcia maior que ele e se aproximando timidamente como q...