Cresci na periferia, e o que mais tinha na área, na minha época, eram arruamentos irregulares, terrenos vazios e muitas encruzilhadas, de vários tipos. Não sei hoje, mas, naquele tempo, as encruzilhadas eram um convite aos – que me perdoem o termo preconceituoso, mas era como falávamos então – macumbeiros.
Cumbucas com farofa, charutos, velas pretas e
vermelhas, algumas com galinhas mortas, outras com garrafas de cachaça ou cidra
vagabunda, outras ainda com tigelas de pipoca. Umas mais ricas, outras mais
modestas... Acho que já existia na minha infância uma espécie de estratificação
social entre os seguidores da religião.
A nós, crianças, aquilo assustava. Tinha a ver
com as Trevas, e as Trevas tinham a ver com o Mal. Os mortos obscuros que frequentavam as
encruzilhadas não podiam trazer o Bem, já que exigiam sacrifícios, só apareciam
à meia-noite e certamente quem os invocava não estava pensando em oferecer
felicidade aos vizinhos, aos maridos traidores ou aos colegas invejosos.
É claro que os trabalhos tinham destinos
específicos, mas para nós eles reuniam coisa ruim o suficiente para sobrar para
todo mundo. Por isso, havia uma regra básica: se pisar ou chutar a macumba, tinha
de ser com o pé esquerdo; se fosse pegar alguma coisa do conjunto, tinha de ser
com a mão esquerda. Tinha um tio que se gabava de beber toda a cachaça que
achava nas encruzilhadas, mas tomando o cuidado de usar o lado esquerdo da
boca.
Não sei por que essa associação da esquerda com
a proteção em relação à macumba – ou, talvez, por extensão, da ligação da
esquerda com o Mal, e, por isso, sua capacidade de funcionar como salvo-conduto
para nos envolvermos com aquilo. Quem sabe venha daí a demonização da esquerda
entre os radicais (ou os ignorantes) de extrema direita que cada vez mais abundam neste
país tropical.
No fundo, a gente não queria mesmo era se
envolver com o que havia nas encruzilhadas, mesmo com mãos ou pés esquerdos. A
solução era deixar quieto porque, mais dia, menos dia, a chuva ou alguém mais
corajoso – ou poderoso – levava a oferenda e devolvia o espaço a novos
trabalhos.
Claro que havia os mais corajosos, que chutavam
as macumbas – com o pé esquerdo, claro – e restava para a gente, mais do que
admiração pela coragem alheia, a expectativa de que algo de ruim pudesse
acontecer a eles. Mas, vejam só, chutar oferendas nas encruzilhadas era o
máximo de demonstração de intolerância religiosa que podia acontecer na aurora
da minha vida.
No ano passado, em contrapartida, mais de mil
denúncias de agressões foram registradas por motivos religiosos no país. No
primeiro semestre, só em São Paulo, as religiões de matriz africana foram
atacadas 57 vezes, contra seis envolvendo evangélicos e seis com católicos como
vítimas. Ou seja, praticantes de umbanda e candomblé foram quase dez vezes mais
vítimas de ódio do que evangélicos e católicos.
Em 2022, essa diferença caiu, mas se manteve na
faixa do quádruplo de casos. E aí é que ouso levantar a questão: a intolerância
é apenas religiosa, ou tem a ver com a origem negra dessas matrizes? Não seria
o caso de afirmar que o que acontece, explicitamente, é racismo religioso?
Boa pergunta para um 2023 que, esperamos, comece
com uma luz no fim do túnel.
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