quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Jogando com Pelé

 Eu trabalhava na sucursal paulista da revista Manchete, em 1985, e Pelé ia receber a visita de Franz Beckenbauer. O falecido Salomão Schwartzman, diretor da sucursal, mandou a mim e ao fotógrafo Bentinho a Santos, para fazer matéria. Chegamos ao estádio da Vila Belmiro e ninguém tinha chegado. Pegamos uma bola no vestiário e, calças arregaçadas, começamos a brincar no campo.

 

Pelé chegou pouco depois, acompanhado de uma equipe de produção da TV Bandeirantes, que estava gravando um especial chamado ‘Jogando com Pelé’. Entre um take e outro do especial, Pelé vinha bater uma bola com a gente. Arnaldo Bento fez uma foto (cromo) minha abraçado com o ídolo, mas ela se perdeu no tempo.

 

Beckenbauer só chegou no dia seguinte. Fomos encontrá-lo na bela casa de Pelé na praia de Pernambuco, no Guarujá. Você atravessa a sala de estar e dá de cara com uma churrasqueira com um balcão para umas quinze pessoas, confortavelmente sentadas. Cheirinho de linguiça na brasa. À direita da churrasqueira, uma escada em caracol leva ao piso superior, onde fica a quadra de tênis e onde Beckenbauer jogava com a esposa.

 

À esquerda da churrasqueira, uma piscina de dimensões médias, com uma mesa e quatro bancos dentro da água. À direita de quem sai da churrasqueira, a piscina ostenta uma enorme cascata artificial. No gramado entre o cheirinho de linguiça e a piscina, uma estátua do Rei.

 

Beckenbauer desceu, fizemos fotos, batemos um papinho... Ouvi dizer que Pelé tinha fama de pão-duro, mas fiquei esperando que ele nos oferecesse uma linguicinha. O máximo a que ele chegou, porém, foi sugerir “uma cervejinha” (meia). Ainda tentei apelar para seu bom senso – “eu só bebo depois de comer alguma coisa” – mas só experimentei a linguiça pelo olfato.

 

Pior: dali a pouco, ele deu um ultimato: “Bom, agora vocês vão embora, porque nós vamos almoçar...”

 

Lamento ter perdido a foto. Lamento não ter experimentado a linguicinha – ou, no mínimo, aceitado a cervejinha. Mas nada me tira o orgulho de ter batido bola com Pelé.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Racismo religioso

Cresci na periferia, e o que mais tinha na área, na minha época, eram arruamentos irregulares, terrenos vazios e muitas encruzilhadas, de vários tipos. Não sei hoje, mas, naquele tempo, as encruzilhadas eram um convite aos – que me perdoem o termo preconceituoso, mas era como falávamos então – macumbeiros.

 

Cumbucas com farofa, charutos, velas pretas e vermelhas, algumas com galinhas mortas, outras com garrafas de cachaça ou cidra vagabunda, outras ainda com tigelas de pipoca. Umas mais ricas, outras mais modestas... Acho que já existia na minha infância uma espécie de estratificação social entre os seguidores da religião.

 

A nós, crianças, aquilo assustava. Tinha a ver com as Trevas, e as Trevas tinham a ver com o Mal. Os mortos obscuros que frequentavam as encruzilhadas não podiam trazer o Bem, já que exigiam sacrifícios, só apareciam à meia-noite e certamente quem os invocava não estava pensando em oferecer felicidade aos vizinhos, aos maridos traidores ou aos colegas invejosos.

 

É claro que os trabalhos tinham destinos específicos, mas para nós eles reuniam coisa ruim o suficiente para sobrar para todo mundo. Por isso, havia uma regra básica: se pisar ou chutar a macumba, tinha de ser com o pé esquerdo; se fosse pegar alguma coisa do conjunto, tinha de ser com a mão esquerda. Tinha um tio que se gabava de beber toda a cachaça que achava nas encruzilhadas, mas tomando o cuidado de usar o lado esquerdo da boca.

 

Não sei por que essa associação da esquerda com a proteção em relação à macumba – ou, talvez, por extensão, da ligação da esquerda com o Mal, e, por isso, sua capacidade de funcionar como salvo-conduto para nos envolvermos com aquilo. Quem sabe venha daí a demonização da esquerda entre os radicais (ou os ignorantes) de extrema direita que cada vez mais abundam neste país tropical.

 

No fundo, a gente não queria mesmo era se envolver com o que havia nas encruzilhadas, mesmo com mãos ou pés esquerdos. A solução era deixar quieto porque, mais dia, menos dia, a chuva ou alguém mais corajoso – ou poderoso – levava a oferenda e devolvia o espaço a novos trabalhos.

 

Claro que havia os mais corajosos, que chutavam as macumbas – com o pé esquerdo, claro – e restava para a gente, mais do que admiração pela coragem alheia, a expectativa de que algo de ruim pudesse acontecer a eles. Mas, vejam só, chutar oferendas nas encruzilhadas era o máximo de demonstração de intolerância religiosa que podia acontecer na aurora da minha vida.

 

No ano passado, em contrapartida, mais de mil denúncias de agressões foram registradas por motivos religiosos no país. No primeiro semestre, só em São Paulo, as religiões de matriz africana foram atacadas 57 vezes, contra seis envolvendo evangélicos e seis com católicos como vítimas. Ou seja, praticantes de umbanda e candomblé foram quase dez vezes mais vítimas de ódio do que evangélicos e católicos.

 

Em 2022, essa diferença caiu, mas se manteve na faixa do quádruplo de casos. E aí é que ouso levantar a questão: a intolerância é apenas religiosa, ou tem a ver com a origem negra dessas matrizes? Não seria o caso de afirmar que o que acontece, explicitamente, é racismo religioso?

 

Boa pergunta para um 2023 que, esperamos, comece com uma luz no fim do túnel.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Velhinho ranzinza

 Está decidido. Quando chegar aos oitenta anos – se chegar, claro! – vou ser o velhinho mais rabugento, mal-humorado e ranzinza que os pobres familiares e vizinhos vão ter de encarar. Em contrapartida, não vou depender de ninguém: trocarei minhas próprias fraldas geriátricas, se necessário; lavarei minhas próprias roupas; cozinharei minhas próprias batatas, cenouras e inhames para fazer papinha; terei um sistema infalível para tomar meus enalapril, nebivolol e hidroclorotiazida sem falhar.

 

Ou seja: não vou ser uma pessoa de convívio deleitoso, mas, em compensação, não vou dar trabalho. As pessoas podem se queixar de que sou uma pessoa insuportável, mas ninguém vai poder dizer que, além de me aguentar, terão de cuidar de mim. Eu mesmo vou me cuidar. Vou ser autossuficiente e encarar todas as minhas fraquezas e necessidades por mim mesmo. Não seria pedir demais que, além de tudo, eu fosse uma pessoa agradável, né?

 

Pois só aguentando as agruras de cuidar de um idoso totalmente dependente é que a gente encontra forças para tomar decisões como esta minha. Só sentindo na pele o que é cuidar de alguém que demanda mais atenção do que uma criança é que se tem disposição para dar um grito de independência: não vou ser essa figura amorfa que a cada dia exige mais cuidado do que o dia anterior e que não consegue fazer um xixi no lugar certo sem uma orientação repetida a cada duas horas. Até as crianças e os gatos aprendem.

 

Eu não vou ser assim! Posso até fazer as coisas erradas, mas será por minha conta. Não quero ninguém me dizendo a que horas dormir, se minhas fraldas estão cheias, se preciso lavar pelo menos os pés antes de ir para a cama. Não quero ninguém cuidando de mim, pois eu próprio vou querer cuidar de mim. E por isso vou ser ranzinza. As pessoas vão passar por mim e dizer “ô, velho ranzinza!” e vão me deixar em paz. O que eu mais vou querer é paz.

 

É claro que vai chegar uma hora e eu não terei mais capacidade de fazer nada, a não ser manter minha ranzinzice. E então vou ter de apelar para alguns cuidados básicos, como lavar minhas roupas, trocar minhas fraldas, cozinhar minhas cenouras, batatas e inhames... Mas aí vou apelar a cuidados profissionais. Já estou guardando dinheiro para isso. De preferência vou atender ao suprassumo das fantasias masculinas e contratar uma enfermeira gostosa, ainda que só possa babar e lamber o travesseiro por ela. O que eu não quero é parente cuidando de mim, mesmo que de graça.

 

Pois estou aqui registrando minhas decisões para que tudo fique preto no branco. Porque provavelmente vou me esquecer daqui a alguns anos a forma como pretendo seguir minha vida, e só sobre mesmo a rabugice.

Bichinho de pelúcia

Tem um vídeo no Instagram que mostra um pequeno cão carregando na boca um bicho de pelúcia maior que ele e se aproximando timidamente como q...