Às vezes, fico pensando
como seria perder a visão depois de velho.
É claro que deixar de
contar com qualquer dos sentidos ou faculdades motoras e intelectuais deve ser
difícil – só para comparar: fiquei apavorado quando perdi o olfato por um único
dia, por causa da Covid – mas ficar sem enxergar deve ser o pior dos calvários.
Fiant tenebrae, façam-se as trevas, ao contrário da ordem divina para o
surgimento da luz.
Se você perde o movimento
das pernas, passa a se mover com uma cadeira de rodas. Se fica surdo ou mudo,
pode expressar-se por sinais ou pela escrita. Mas, e se ficar cego? Passa pela
minha memória um trecho da peça ‘O milagre de Anne Sullivan’, que assisti na
minha adolescência, em que Hellen Keller aprende a se comunicar por pressões
nas palmas das mãos...
Mas ela nasceu assim! Era
cega, surda e muda de nascença! Portanto, por ser deficiente desde o berço, não
teve a supressão dos sentidos através dos anos e não teve de aprender a viver
sem eles. Mas quando isso acontece quando alguém já viveu parte sua vida – mais
da metade, às vezes – e tem de se acostumar à ausência de algo que fazia parte
de sua tarefa de viver?
O inspirador desde texto é
o amigo Assis Ângelo, jornalista tarimbado, pesquisador e estudioso da cultura
popular, que há mais de dez anos teve descolamento de retinas e perdeu a visão
dos dois olhos. Trabalhador incansável, ele não parou até hoje. Aliás, está até produzindo mais. Mas é claro
que não consegue fazer as coisas sozinho: depende de alguém para ler para si,
depende de alguém para digitar seus textos, depende de alguém que substitua a
função de seus olhos – embora ele diga que não está enxergando, mas não perdeu
a visão.
Aprendi com ele que a adaptação
ao novo estágio da vida depende de resignação. Quando o visitei, logo no início
do trauma, peguei-o medindo os passos entre o sofá da sala e a porta do
apartamento e entre a porta do elevador e a portaria do prédio, ainda
manuseando tropegamente a bengala apropriada e lutando para manter a caminhada
em linha reta. Estava dando os primeiros passos para se adaptar à sua nova
condição de mobilidade.
Falo bastante com ele ao
telefone e percebo que sua energia, agora aos 70 anos, vem continuamente sendo
renovada. Como eu disse, resignação. A nova condição não tem volta. Então, ou
você se adapta a ela, ou morre, ainda que em sentido figurado. Ele se adaptou, felizmente para nós, seus amigos.
Mas eu não sei se me
adaptaria. Não sei se conseguiria deixar de ver a novela, saber se está sol apenas
olhando pela janela, saber que aquele barulho são as ondas batendo, acompanhar
os pés de alface crescendo na horta, deliciar-me com a beleza feminina
passeando na praia, escrever, escrever e escrever, corrigindo meu próprio
texto, escolher as imagens que vão ilustrar a postagem, mexer com as imagens no
Photoshop, rabiscar a aprender a pintar com aquarela, dirigir pelo trânsito
caótico, jogar paciência spider no celular, fotografar a natureza, que parece
cada vez mais exibida e fotogênica...
Não sei realmente se
conseguiria.
Em tempo: para me ajudar com as expressões latinas evanescat
lux (evaneça-se a luz, o oposto de faça-se a luz-fiat lux) e fiant tenebrae
(façam-se as trevas), contei com a sabedoria e boa vontade do sobrinho Marcello
Peres Zanfra, doutor em Letras Clássicas pela USP.
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