terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Jargões

Cria de uma das editorias das mais férteis em temos do uso de jargões – a reportagem policial – resisti bravamente ao emprego de expressões típicas, lugares-comuns e gírias exclusivas das matérias criminais. Não que fosse contra elas. É que os tempos estavam mudando quando entrei na área, a editoria de polícia estava sendo aos poucos ‘purificada’, e eu tinha de me adaptar à nova realidade. A tônica dessa nova realidade era dar fim aos jargões.

 

Comecei na reportagem policial em outubro de 1977, quando alguns dos velhos repórteres ainda estavam na ativa – e, embora fossem cruciais para orientar a nova geração, traziam entranhadas em sua linguagem as expressões condenadas à filtragem. Naquele tempo, um presunto recheado de azeitonas não era uma iguaria de fino paladar a ser levada à mesa, mas o jargão típico para designar uma pessoa morta a tiros. Preferencialmente com muitos tiros.

 

Da mesma forma, um hospital não era um hospital, mas um nosocômio, os bombeiros eram os soldados do fogo, os advogados eram causídicos, o cemitério era a necrópole, os criminosos eram meliantes ou larápios, a maconha era a erva maldita e, se alguma vítima de crime estivesse caída de costas, para o repórter policial da época ela não estava simplesmente caída de costas, mas em decúbito dorsal.

 

Os tempos mudaram, a linguagem mudou – embora a duras penas – e hoje, mais de quarenta anos depois, são muito poucos os jargões policiais que sobrevivem no jornalismo. Um deles é o termo viatura para identificar o veículo policial. Os outros a gente ouve diariamente na TV, e parece, pela insistência e persistência dos repórteres, que não há outra forma de as coisas serem ditas: se um policial não der voz de prisão, provavelmente o bandido vai fugir; se o ladrão não anunciar o assalto, as pessoas certamente vão pensar que ele está tentando fazer outra coisa que não assaltá-las.

 

A TV, aliás, é a maior fonte de jargões do jornalismo moderno (?), e por isso mesmo, por seu alcance, um foco irradiador muito mais potente do que a imprensa escrita. Na verdade, o que a gente ouve na TV não são propriamente jargões, mas expressões de uso comum – à exaustão – que indicam, mais do que a limitação de termos, a pobreza de ideias.

 

Entra ano, sai ano, a temperatura não estará tão baixa se o repórter não falar em tirar o casaco do armário, a festa não será boa se não estiver pra lá de animada ou se não tem hora pra acabar e nenhuma pessoa das classes menos favorecidas estará apresentável se não vestir a roupa de domingo...

 

Além disso, o repórter sempre vai definir as dimensões de uma área comparando-a a campos de futebol (como se todo mundo conhecesse as dimensões de um campo de futebol) e mostrar comparativamente a quantidade de dinheiro envolvida numa transação calculando quantos carros populares dá para comprar com ela.

 

E isso quarenta anos depois de os jargões terem sido condenados à morte!

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